quinta-feira, 17 de maio de 2012

A analogia do mp3


           Uma das ideias que mais vão de encontro à assertiva cristã de que deus é perfeito, onipotente, onisciente e infinitamente benevolente é a própria questão da existência do mal. Por mal, entenda-se a faculdade humana do egoísmo, a desigualdade social (muitas vezes fruto desse egoísmo), a opressão de uns por parte de outros, os preconceitos, assassinatos, crueldade, pessoas passando fome... todas aquelas coisas que causam demasiado sofrimento às pessoas, e sobre as quais chegamos a um consenso: são ruins.
             Chegamos então ao cerne da discussão: qual seria a origem desse mal? Dependendo da resposta dessa pergunta, podemos chegar às mais variadas conclusões. Seria, basicamente, uma caça ao “culpado” pelo mal que vemos no mundo. Os não-religiosos dizem que deus é o culpado, pois tem tanto poder e mesmo assim deixa o mal existir. Religiosos respondem dizendo que deus nos deu o livre-arbítrio, e temos a capacidade de escolher qual caminho seguir, sendo a vida baseada em escolhas. Os que escolhem prejudicar o próximo, e agem de tal forma que acabam causando conseqüências danosas à sociedade, seriam punidos após a morte, por seu próprio criador.
          Detenhamo-nos por um instante no argumento religioso. Deus cria uma espécie que dominará o planeta, deixando-a livre para fazer o que quiser. Quer que os homens amem uns aos outros, o que expressa em seus mandamentos. Abre, através do livre-arbítrio, uma brecha para que suas criaturas se desvirtuem e tornem a convivência um verdadeiro caos, o que realmente ocorre em muitos casos – alguns humanos triunfam sobre outros, sendo injustos e inescrupulosos. Muitos inocentes sofrem devido ao fato de outros escolherem o “caminho do mal”. A questão é: o que leva alguns homens à escolha pelo mal?
            Se o mal vem da humanidade e de suas escolhas, podemos dizer que a prática do maligno já está no âmago da personalidade humana. O mal se encontra “embrionariamente” em algumas pessoas, caso contrário não ocorreria a escolha por tal caminho. Segundo a doutrina cristã, deus criou o homem, sendo então o responsável por esta predisposição a fazer o mal. Para uma melhor explicação, chegamos à analogia do mp3 propriamente dita.
            Suponha um técnico em eletrônica que fabrica um aparelho reprodutor de músicas, conhecido popularmente por MP3 Player. Ao fabricá-lo, o técnico faz com que ele tenha a função shuffle, a qual faz com que o aparelho reproduza qualquer música, aleatoriamente. Depois de concluída a fabricação, o técnico passa à etapa da escolha das músicas para armazenar no dispositivo. Ele pode escolher entre músicas boas e ruins. Coloca as músicas e liga o aparelho na função shuffle, ou seja, deixa o aparelho livre para tocar qualquer coisa. É fato: só serão reproduzidas músicas ruins se o técnico inseriu tais músicas na criação do aparelho.
            A analogia fica óbvia: o técnico seria o criador, o aparelho seria a criatura (ser humano), a função shuffle seria o livre-arbítrio e as músicas colocadas seriam as predisposições da nossa personalidade, podendo ser boas ou ruins. Acabamos ficando sem outra saída: a responsabilidade seria de deus, mesmo se o mal for fruto do nosso livre-arbítrio. Disso tiramos uma conclusão: das qualidades que a religião cristã dá a deus (onipotência, onipresença, onisciência e infinita benevolência), pelo menos uma ele (se existe) não possui.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Pseudo revolucionários


        Algo que realmente me aborrece é ver pessoas que, para tentarem ser diferentes – e muitas vezes para “aparecerem” com isso – começam a bancar os revolucionários. Contra o sistema, contra a polícia, contra o exército, contra o governo... contra. E, de tantos que fazem isso, começo até a pensar que tentar ser diferente, tentar ser alguém único nadando contra a corrente acabou virando uma modinha. Por mais contraditório que possa parecer.
         Essas pessoas passam dizendo que os cidadãos estão sendo oprimidos, enganados, que a mídia não passa de uma arma de manipulação e que polícia, exército e governo são motores diabólicos de uma dominação inescrupulosa. Em alguns casos, algumas dessas coisas podem ser parcialmente verdadeiras. Mas a generalização com que os pseudo revolucionários tratam essas questões é incrível. Parece que, às vezes, só querem criticar, só gritar aos quatro cantos que tudo está uma porcaria e a sociedade é má. Pelo simples prazer em falar mal, só para levantar a bandeira de uma revolução que eles nunca fazem de fato.
         No grupo dos pseudo revolucionários, está contido o grupo dos pseudo comunistas. Em muitos casos, são pessoas que mal leram (ou mal compreenderam) os verdadeiros princípios da doutrina comunista/socialista. Pessoas que dizem da boca pra fora: “sou comunista”. E criticam vorazmente o capitalismo, como se este fosse a fonte de todo o mal e de toda a desigualdade social presente na atualidade. Apontam a conversão total ao comunismo como a única saída, sem nem refletir sobre o quão utópica esta é (é utópica tanto a conversão total ao comunismo quanto a sociedade “perfeita” pregada pelo comunismo em si).
         Outro aspecto com o qual fico incomodado é o fato de que, para muitas dessas pessoas, se você não pensa como elas, não apóia a pseudo revolução delas, você é um alienado, tomado pela mídia, que “faz o que o sistema quer que você faça”. Não compreendem que não é necessário sair por aí espalhando ideias utópicas e superficiais de revolução, com uma camiseta do Che Guevara, para ser uma pessoa esclarecida e com desejo de mudança.
      Precisa-se urgentemente de mais pensamento crítico e de mais propostas de mudança com sólidas bases teóricas e aplicações práticas. Menos revoluções imaginárias e mais atitude realista.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Nem tão perfeito...


         Os católicos e cristãos em geral dizem que Deus é infinitamente justo e bom, e seu amor é incondicional. Mas, se pararmos para pensar a fundo sobre isso, observaremos uma grande contradição. Se um ser onipotente nos ama tanto e só quer o nosso bem, porque existe o mal? Com que razão pessoas roubam, matam, enganam, oprimem? Porque se desenvolveu um sistema global aonde algumas nações controlam quase todo o mundo e outras sofrem com a maioria da sua população na extrema miséria?
      A resposta do religioso seria a clássica: “Deus nos deu o livre-arbítrio. Podemos fazer o que quisermos, encarando as consequências disso depois.” O livre-arbítrio citado é uma liberdade supostamente “dada” ao ser humano. Com essa liberdade, a humanidade poderia fazer o que quisesse, mostrando dessa forma quem ela realmente é. Podendo optar entre fazer o bem ou o mal, o ser humano revela a sua essência, o que ele está disposto a fazer. Se foi dada a liberdade e a sociedade está do jeito que está, conclui-se que existem sérios defeitos na criação divina. Certos homens são, na sua essência, maldosos, corruptos, traiçoeiros. Logo, cai por terra a teoria católica do “Deus perfeito”.
     Seguindo esse raciocínio, se o mal for culpa do livre-arbítrio, há uma tendência da humanidade para não conseguir conviver pacificamente, visto que a miséria é um problema que castiga milhões, há violência nas ruas e eventualmente ocorrem guerras. E se a humanidade tem essa tendência, é um "defeito de fabricação". Se o mal não for fruto do livre-arbítrio, ou seja, não for culpa dos seres humanos, porque a divindade simplesmente não o impede de chegar até nós?
      A própria existência do mal em si... qualquer que seja a desculpa, se realmente houver uma divindade onipotente e que nos ame, não deveria haver o mal. Não deveria existir a ganância, a desigualdade social, a megalomania que gera guerras. Devemos pensar de uma forma mais crítica, filtrando melhor certas coisas que nos são impostas. Talvez o ser supremo que muitos dizem comandar todas as coisas não seja tão supremo, e não comande todas as coisas. Talvez ele nem exista.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Os dois Metallicas


       Os mais fiéis ao Trash Metal clássico hão de concordar comigo. Há dois Metallicas: um antes e outro depois do “Black Album”. A obra que contém clássicos como “Enter Sandman” e “Nothing Else Matters” é uma transição da fase “old-school” da banda para uma fase com mais liberalismo musical e experimentação.
        Comecemos analisando os primórdios. O álbum “Kill ‘em All” nos traz um Trash Metal puro, “nu e cru”, com riffs matadores e letras abordando violência. A sonoridade é suja e áspera, e os vocais de James são gritados e agressivos. É a voz de um James jovem, sendo mais aguda do que o observado em outros álbuns.
      Posteriores ao “Kill ‘em All”, temos “Ride the Lightning”, “Master of Puppets” e “... and Justice for All”. Nestas obras, a tendência da agressividade e da pureza do Trash Metal em sua essência é mantida, mas observa-se um aumento gradativo na complexidade das composições e na média de duração das músicas. Exemplo disso são as canções “For Whom the Bell Tolls”, “Ride the Lightning”, “Fade to Black”, “Battery”, “Welcome Home (Sanitarium)”, “Orion”, “One”, e “... and Justice for All”, nas quais temos várias quebras de ritmo, solos e diferentes andamentos rítmicos na mesma música. Percebe-se também um certo “amadurecimento” na voz de Hetfield, a qual vai abandonando os agudos estridentes do Kill ‘em All.
     Chegamos, então, ao Black Album. Berço de quatro dos maiores hits do Metallica: “Enter Sandman”, “Sad but True”, “The Unforgiven” e “Nothing Else Matters”. A transição mencionada anteriormente é evidenciada pela cara mais “comercial” que as músicas começam a tomar. Aparecem as primeiras canções da banda que podem realmente ser taxadas como baladas. A média de duração das músicas já diminui, tendo 6 minutos e 49 segundos a mais longa delas (“My Friend of Misery”, que é pouco conhecida). Foi o álbum mais trabalhoso para fazer até então, mas catapultou a fama da banda a níveis extraordinários. Ao mesmo tempo, pôs a “pulga atrás da orelha” dos fãs do estilo Trash Metal old-school.
         A partir daí, o Metallica assumiu de vez o novo jeito de fazer música, nos álbuns “Load” e “Reload”. Um estilo bem distante do old-school do “Kill ’em All” e do “Ride the Lightning”. A sonoridade das músicas mudou, tanto no formato das composições quanto no timbre das guitarras. A voz de James também está mudada, desta vez bem mais sólida e... “madura”. Outra curiosidade fica por conta dos volumes das músicas. Talvez para causar mais impacto, as músicas do “Load” (e também dos álbuns que vieram depois) foram gravadas com um volume um pouco maior. Experimente ouvir uma música do “Kill ‘em All” e uma do “Load” sem alterar o volume do player.
         No geral, quem era apaixonado pelo Metallica antigo ficou ainda mais revoltado. Muitos chamaram (e ainda chamam) a banda de “vendida”. A verdade é que o Black Album foi um divisor de águas. No álbum “Death Magnetic”, de 2008, recuperou-se a brutalidade do som do Metallica, com músicas longas (a mais curta é “My Apocalipse”, com 5 minutos), agressivas e pesadas (todas elas). Mas mesmo assim a dualidade antes/depois do Black Album é inegável. O que importa é que os caras garantiram o seu lugar entre os deuses do Rock, e sempre serão lembrados pelas canções lendárias que agitam multidões pelo mundo inteiro.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Deus segundo Spinoza


O texto abaixo não é de minha autoria. Diz-se que foi escrito pelo filósofo Baruch Spinoza (1632-1677), mas há muitas controvérsias sobre a sua autoria. Achei interessante divulgá-lo aqui, visto que apresenta uma visão singular sobre religião, com a qual concordei em vários aspectos.



“Pára de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.
Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau.
O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho... Não me encontrarás em nenhum livro!
Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?
Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.
Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.
Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.
Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.
E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?
Pára de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.
Pára de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja?
Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Te sentes olhado, surpreendido?... Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações?
Não me procures fora!
Não me acharás.
Procura-me dentro... aí é que estou, batendo em ti.
Baruch Spinoza.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Heterogênea e desigual sempre.

      Em todos os lugares, a todo momento, ouvimos pessoas falando que o mundo está um caos, que a sociedade é injusta, que é necessário uma mudança drástica no sistema vigente – por “sistema” entenda-se estrutura socioeconômica, estrutura política. Queixar-se dos problemas do mundo atual tornou-se tão comum quanto respirar.         Muitos reclamam da desigualdade social, mas exterminá-la completamente é impossível.
A desigualdade ocorre principalmente devido ao surgimento do modo de produção capitalista, o qual fez entrar em cena a competição. Competição pelo crescimento individual, pela ascenção social, para sermelhor do que os outros. Tendo isto como problema a ser resolvido, a proposta de situação ideal fica óbvia: uma sociedade sem desigualdades. Mas seria isto possível? E se alcançássemos esta situação, ela duraria por muito tempo?
     A desigualdade não se originou única e exclusivamente por causa do capitalismo. Ela é fruto, também, das diferenças entre as próprias pessoas. Algumas sabem administrar melhor o dinheiro, tendo sucesso, abrindo um negócio, tomando posse de meios de produção; outras não sabem o que fazer com o que tem, acabam falindo e tendo que se submeter a uma sociedade onde quem tem mais posses domina. Tendo ciência dessas diferenças, imaginemos uma sociedade sem desigualdades. Ao passar de alguns anos, começariam a surgir diferenças, oriundas da capacidade de progredir – ou regredir – economicamente das pessoas. Quem ganha dinheiro e sabe administrá-lo, passa a ganhar ainda mais. Logo, as diferenças cresceriam exponencialmente. Adeus, sociedade perfeita.
        Alguns sugerem, então, o socialismo. Forçar as pessoas a serem iguais, tirando-lhes o direito à propriedade privada. Se bem aplicado, o socialismo supre as necessidades básicas de todos, o que seria ótimo. Mas... supre as necessidades básicas. As pessoas vão passar a querer mais, e isso poderia causar revolta. O “pacote” do socialismo inclui também uma economia planificada, o que, no contexto atual globalizado, está longe de ser uma boa ideia.
      O homem quer sempre evoluir economicamente, e isso se dá, muitas vezes, às custas de outros. A desigualdade acaba sendo uma praga, que tem vida própria, reproduz-se inevitavelmente. Ao que parece, estamos fadados a conviver com isso. O jeito é tentar amenizar, o máximo possível.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Irmãos, não importa o que aconteça


          Nada muito incomum para quem visse de longe. O senhor idoso e sua esposa sendo levados pelo genro para passear, visitar parentes na zona rural de uma cidade do interior. A hospitalidade sendo posta em prática, o chimarrão amigo sendo passado de mão em mão. Mas para aquele senhor idoso, dentro do íntimo da sua mente, havia algo a mais.
As mais de oito décadas de vida haviam lhe proporcionado experiências das mais diversas. Já havia sido um garoto trabalhador de uma pequena propriedade rural extremamente humilde dos pais, um soldado do exército – destaque da tropa, por sinal – aos 18 anos, um auxiliar de construções civis, eletricista, agricultor pela segunda vez, pai, avô. Naquele momento, naquela casa, havia diante de seus olhos um pedaço do seu passado mais distante. A irmã, com seus 85 anos de idade, sofria de mal de Alzheimer, e tinha sérias dificuldades para reconhecê-lo.
Ele senta-se ao lado da irmã, e a olha nos olhos. Estão vazios, distantes, são olhos de alguém que mal sabe o que faz ali. A voz que sai da boca do idoso é acompanhada de um amor incondicional:
               
- Lembra de mim, maninha?
A resposta vem depois de um longo silêncio:
- Eu... eu não sei...
- Lembra sim. Lembra de quando trabalhávamos com nossos pais na lavoura, enquanto cantávamos os sucessos do momento? Lembra dos bailes, dos meninos que lhe tiravam para dançar?
- Você... é meu irmão?
- Sim. O irmão que fazia você rir quando papai nos deixava de castigo e você chorava. E que agora vem aqui sempre que pode, na esperança de ser lembrado.
Agora lágrimas saiam dos olhos daquela senhora, e percorriam-lhe a face.
- Vilson...
- Sim, sou eu.
- Eu te amo, maninho.
O abraço que veio em seguida foi o retrato de um afeto fraternal que superou décadas, idas e vindas, caprichos da existência, e se manteve. Perto dali, observando quieto, um adolescente de dezessete anos, neto de Vilson, assistia àquela memorável lição de vida.

                                                                                                                                                                       
                                        Baseado em fatos reais